Direito de quê, mesmo?
- Marcia Marques
- 16 de nov.
- 5 min de leitura
Ao reproduzir um texto recebido, tenho certeza daquela autoria? Porque em alguns casos pode virar um problema nos tribunais. Aquela foto linda, que estou publicando ou enviando para alguém, quem fez? É mesmo no local que estou indicando?
"Tudo que estou passando
Não é nada do que eu não sei”
Márcia Marques*

Saiu o novo álbum do Djavan, Improviso. Pesquisadora sobre desinformação, no automático, busco a ficha técnica. Está tudo ali, a letra, autoria, quem toca, quem fez o audiovisual que mergulhou o artista em uma caixa/lousa preta toda escrita detalhada de anotações e notações musicais do trabalho. Profissionais de música, audiovisual e fotografia têm, por ofício, o hábito de indexar os trabalhos: dados sobre quem fez (no plural, se for coletivo), quando, onde e outras minúcias que permitam identificar aquela obra específica.
Essa rotina profissional, na verdade, diz respeito à legislação que envolve o direito de autoria e a respectiva remuneração, prevista como outro tipo de direito e que paga autores e toda a rede daquela produção até chegar aos grandes conglomerados que ficam com a parte maior.
A regulação dos direitos autorais é desencadeada a partir do desenvolvimento, no século XV, da tecnologia de impressão com tipos móveis, por Johannes Gutenberg, que permitia reproduzir em escala massiva textos manuscritos, antes restritos a leituras em conventos e bibliotecas. O Ato de Santa Ana, em 1770, na Inglaterra, é o primeiro documento a definir o “copyright", o direito de reproduzir obras. Sete anos depois, uma disputa legal de um membro da nobreza britânica resultou na extensão do direito de autoria à obra musical reproduzida em partituras. Após a revolução, em 1789, a França acrescentou ao direito autoral o direito à integridade intelectual do pensamento fixado na obra, prevendo direitos a quem criou objetos, produtos de arte ou de natureza intelectual. Em 1886, em Berna, Suíça, define-se internacionalmente o que é autoria. O Brasil, à época sob o mando de Pedro II, é signatário do documento.
As discussões e normatizações neste campo dos direitos de autoria e distribuição se estendem até início do século XX, quando mudanças tecnológicas afetam a vida cotidiana das pessoas no planeta e pedem novas formas de regulamentação e de regulação. Muitas das tecnologias como rádio, cinema e televisão, nascem abertas, meios de comunicação utilizados por comunidades para troca de informação, arte, conhecimento, memória.
Entre os anos 1920 e 1960 as comunicações viveram um momento de captura dos direitos de difusão das obras. Tecnologias que nascem para solucionar as trocas de informação entre pequenos grupos, como rádio, televisão e cinema, são capturados e transformados em emissoras de rádio e de televisão, em salas de cinema, tudo se organizando em torno de conglomerados capazes de ditar o que era cultura para as massas no cenário mundial.
Quando o cinema ficou aprisionado em salas, os filmes americanos, por exemplo, eram obrigados a mostrar duas camas de solteiro no quarto de casal, por determinação dos censores que atuavam em nome da moral e dos bons costumes, no final dos anos 1950, no período de caça aos comunistas do Macartismo nos Estados Unidos, durante a Guerra Fria.
Pós-barbárie
Voltando um pouco no tempo, o período pós-Guerra trouxe a pauta de um novo pacto para a sociedade mundial. Funda-se a Organização das Nações Unidas, em outubro de 1945, para reconstruir um planeta envolvido em uma conflagração que terminou com as explosões atômicas contra Hiroshima e Nagasaki. Este contexto de reconstrução pós-barbárie é a base do texto da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de dezembro de 1948. Reflexo dos embates numa estrutura internacional de hegemonia do Capitalismo, podemos considerar que os direitos agrupam-se em dois conjuntos: civis e políticos, que regulam o funcionamento do Estado e são de origem burguesa; e econômico-sociais e culturais, que buscam regulamentos de defesa dos trabalhadores.
A chegada da internet, também fruto da reorganização da informação e do conhecimento no pós-Guerra, trouxe no bojo de uma sociedade que se enxerga em rede a discussão sobre novos direitos de solidariedade, coletivos, que envolvem a diversidade de cultura, de raça, de gênero, de origem socioeconômica, de crença.
O fim da II Guerra Mundial e início da Guerra Fria, aliás, é um período de produção de um volume imenso de informações, em meio digital, que precisam ser trocadas e ao mesmo tempo estar sob proteção de olhares inimigos. É quando são desenvolvidas tecnologias de gestão da informação, de armazenagem segura para acessos controlados, bem como estruturas para distribuição e acesso de toda a população. O objetivo, neste segundo caso, é aplicar o previsto no artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948:
“Todo o indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão, o que implica o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões e o de procurar, receber e difundir, sem consideração de fronteiras, informações e ideias por qualquer meio de expressão”.
A internet e a lógica do algoritmo, a partir da segunda metade do século XX, com aceleração no acesso pessoal a partir dos anos 1990, provocam mudanças radicais no modo como as pessoas (repetindo o texto do artigo 19) podem emitir opiniões e “procurar, receber e difundir, sem consideração de fronteiras, informações e ideias por qualquer meio de expressão”.
Novos atores
Para muitos, é a mágica do mundo a um clique de distância. A legislação sobre direitos também passa a sofrer alterações, com a definição do que é o copyright no meio digital, para texto, áudio e direitos conexos. A entrada desta rede digital em nossas vidas torna mais complexo observar um sistema que se baseava apenas na obra, como bem a ser protegido/precificado. Agora, há novos atores, alguns físicos – como fibra ótica, sistemas de conexão, equipamentos e aparelhos, como celulares – e alguns lógicos – como linguagens da computação, códigos, arquiteturas de informação.
Todos esses direitos estão presentes na simples publicação de um texto, ou uma imagem, em uma rede digital de publicação geral ou em grupos de mensagens mais restritos. Ao reproduzir um texto recebido, tenho certeza daquela autoria? Porque em alguns casos pode virar um problema nos tribunais. Aquela foto linda, que estou publicando ou enviando para alguém, quem fez? É mesmo no local que estou indicando? Tem participação da Inteligência Artificial? As pessoas da foto (que não sejam figuras públicas) autorizaram? Incluir um som bacana no meu vídeo, pode? Espero a ação dos algoritmos? Mas, eles são suficientes? Eles extrapolam? A máquina tem limites na identificação de quem afronta as normas.
Atualmente participo de pesquisa com grande volume de extração de dados para submetê-los à IA em que é preciso fazer perguntas à máquina para que ela processe os dados e nos forneça respostas. Os primeiros testes mostraram que a IA mente, ou dá respostas enroladas, quando não sabe (no momento, estamos refazendo perguntas). Muitos testes têm por objetivo treinar a máquina para o combate à desinformação, o que é importante. Mas, como em todo e qualquer universo complexo, não existe resposta simples, única. Precisamos mudar o comportamento humano no que diz respeito à informação, especialmente com aprendizados sobre como acontecem as trocas de informação na sociedade.
É possível entender que um pequeno gesto de cuidado com a informação, como faz a equipe do Djavan, é uma forma de combate à desinformação, e é também um gesto de respeito à memória das gentes que participaram do trabalho. Aliás, por conta da pesquisa, o algoritmo me deixou Djavanear um bocado.
Leituras que ajudaram por aqui:
A monografia: Os direitos autorais entre os impérios da comunicação –
Sociedade em rede, propriedade intelectual e Hip-Hop, de Joaquim Barbosa dos Santos Júnior. Acessível no link:
A Declaração Universal dos Direitos Humanos:
O som do Djavan:
*Márcia Marques, professora do curso de Jornalismo da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília (UnB) desde 1997. Jornalista de formação, mestra em Comunicação e doutora em Ciência da Informação, com pesquisa sobre um modelo teórico-metodológico para a ação em rede. Autora do livro Ciberfeminismo: redes e espaços de poder, da editora Veneta.




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