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A teia complexa que mobilizou dezenas de milhares de pessoas pelas ruas do Brasil contra a lei da impunidade

  • Marcia Marques
  • há 4 dias
  • 8 min de leitura

Não há dois mundos, um físico e outro digital, há um mundo complexo emaranhado entre físico e digital que afeta até mesmo quem não tem acesso a tecnologias


Márcia Marques*



Ilustração de Paulo Andrade
Ilustração de Paulo Andrade

Buscamos resposta simples, única, para os problemas – públicos ou privados – que nos afetam. No imaginário coletivo, o Graal nos ofereceria a possibilidade de cura para todas as enfermidades, a Pedra Filosofal seria capaz de transformar o mais miserável dos metais em ouro. Há ainda a crença de que basta eleger alguém contra o sistema, ou a casta, que tudo muda (o que é verdade), para melhor (o que pode ser qualquer coisa). Por este raciocínio simplista, há uma solução correta apenas, e qualquer outra possibilidade é errada e deve ser descartada.


O pesquisador de redes na perspectiva da computação, Benedito Medeiros Neto (in memoriam), dizia que os sistemas computacionais (o algoritmo é uma sequência de milhares de linhas ordenadoras em raciocínio reduzido ao sim ou não, ao zero ou um) estavam afetando o modo de pensar humano, limitando nossos cérebros, ricos e criativos, a processadores de respostas binárias.


Esta tendência simplificadora se materializa em muitas notícias e análises de fatos da política na mídia jornalística cotidiana. Em boa parte dos conteúdos – em texto, imagem, áudio e audiovisual – o âmago está em definir quem ganhou ou perdeu, se foi a direita ou a esquerda, e debater por que ainda há tanta polarização. A diversidade e a complexidade ficam totalmente fora da conversa.


A ideia deste texto é apresentar outros fatores envolvidos na teia de comunicação e informação nos dias de hoje. Oferecer elementos de compreensão dos fatos a partir do exercício de olhar a malha de alguns atores que se enredaram nos acontecimentos de 21 de setembro, dia das manifestações descentralizadas de dezenas de milhares de pessoas – nas capitais e em pequenas cidades do interior do país – contra a aprovação, em regime de urgência, da "PEC da Impunidade” como foi denominada nas redes a Proposta de Emenda Constitucional para blindar parlamentares e dirigentes partidários de serem judicialmente processados.

Mais do que fatores ligados à teia da comunicação, a ideia aqui é falar de alguns conjuntos de atores que se relacionam nessa rede de múltiplas redes. São grupos humanos e não-humanos, como propõe Bruno Latour, o antropólogo, sociólogo e filósofo da ciência francês, na teoria do ator-rede.


O ator, humano, ou não, se relaciona com outros atores, humanos ou não, por meio de atores, humanos ou não. As coisas, como livros, documentos e equipamentos, inclusive os que se usam para acessar a internet e outros elementos digitais, como a inteligência artificial; pessoas jurídicas e/ou institucionais, agrupamentos humanos com códigos de convivência pactuados socialmente, como coletivos, partidos políticos, organizações não-governamentais, instituições de governo, empresas; as ideias, referências bibliográficas, links para informações necessárias em áudio, texto, vídeo e imagem estática; e os outros seres, como animais, vermes, vírus, todos são atores-rede não-humanos e interferem na vida social.


É preciso ficar atento a mais uma questão, não há dois mundos, um físico e outro digital, há um mundo complexo emaranhado entre físico e digital que afeta até mesmo quem não tem acesso a tecnologias.


Algo complexo não é necessariamente complicado e simplificar as coisas é importante, desde que se compreenda que a simplificação é como uma ponte a nos conectar com algo separado, diferente, e não a resposta única para todos os problemas. Repetindo, a Pedra Filosofal é mito coletivo. Neste sentido, pensar de modo a compreender objetos complexos é também fazer um exercício para ampliar o conjunto de informações em torno do tal objeto.


Ao tratar de alguns atores que impactaram as ações coletivas nas manifestações, será possível perceber ausências. Ótimo, a ideia é que para termos compreensão crítica do mundo complexo nos acostumemos a buscar mais informações e que estas sejam verdadeiras, tenham origem conhecida, para sustentar nossa compreensão da realidade social.


Neste caso em que se propõe pensar sobre o que aconteceu na perspectiva da complexidade, que embaralha muitas telas, há alguns atores-rede que serão ressaltados. São coletivos de atores humanos e/ou não-humanos, que sofrem, ou provocam, interferências na vida dos atores humanos, isoladamente ou em grupos. Vamos a pinceladas sobre alguns deles:


As tecnologias: os aparelhos, além de programas e aplicativos são atores-meio, intermediadores no acesso à informação. Conhecer ou desconhecer os usos de aparatos tecnológicos e computacionais são fatores de inclusão ou exclusão das pessoas neste acesso. É preciso atentar que o desenvolvimento tecnológico está umbilicalmente ligado à exploração ambiental pois consomem muita água e minerais para fazer o processamento ultrarrápido de um volume imenso de informação.


As big techs e as plataformas: são atores-chave no contexto da sociedade híbrida que vivemos – física/digital – pois não respeitam fronteiras nem legislações sobre tributos e direitos de trabalhadores (todos os países enfrentam o mesmo problema), definem as regras de convivência para os usuários destas redes, censuram conteúdos, manipulam audiências (algumas vezes com apoio do uso massivo de robôs para direcionar conteúdos a partir dos sentidos que eles oferecem). As plataformas também criam bolhas de audiências manipuladas. São as big techs e plataformas que utilizam tecnologias que provocam graves danos ambientais ao planeta. Os movimentos de rua de 2013, como a primavera árabe, e o passe livre, no Brasil, foram os primeiros a contar com as plataformas aglutinando pessoas em torno de palavras-de-ordem comuns, em geral iniciadas por uma hashtag #.


A mídia: na comunicação de massas, em termos de apresentação, se materializa em produtos impressos, de áudio e audiovisuais. Os meios mais destacados são os jornalísticos, importantes centros emissores de informação de credibilidade (a Unesco inclui bibliotecas e arquivos, nesta lista); na comunicação em rede, somam-se veículos na internet em um híbrido de texto, áudio, imagem estática e audiovisual que une de forma homogênea todos os modos anteriores, por meio de ligações digitais, os links. Algumas novidades surgem neste processo de crescimento da malha digital no cotidiano social: a eclosão de influencers que tornam tudo mercadoria e a proliferação de veículos de caráter jornalístico que se autodenominam mídia independente, em geral identificada com a esquerda e com pouco capital para sustentação da empreitada.


A mídia jornalística: é a responsável pela construção de sentidos para o coletivo social. É complexa, formada por diferentes emaranhados:

mídia corporativa: são empresas focadas em produtos jornalísticos. No Brasil, há uma rede de veículos impressos e de rádio e televisão que na prática giram em torno do mando de poucas famílias, donas também da rede de distribuição audiovisual, o que não é permitido pela Constituição, mas nunca foi regulamentado por uma lei. Do ponto de vista econômico, hoje muitas estão sob gestão do mercado financeiro. Sofre para sobreviver ao crescimento do digital, que trouxe concorrências inesperadas, mas também enxugamentos de pessoal nas redações. Os profissionais que trabalham nestes veículos têm independência sempre limitada pelos interesses da empresa, do empregador, mas os jornais precisam atender especialmente os interesses dos leitores, o que também afeta este equilíbrio sobre o que é publicado.

mídia independente: filha do desenvolvimento tecnológico para atuação em rede que ocorre no final da primeira década do século XXI. Em 2011 Julian Assange lidera a organização Wikileaks e promove a distribuição de documentos vazados com informações confidenciais dos Estados Unidos sobre o exército norte-americano e o monitoramento da senadora Hilary Clinton, nos Estados Unidos, e do governo de Dilma Rousseff, entre outros. O material foi analisado por jornalistas de todo o mundo. No Brasil, na esteira da análise coletiva dos vazamentos de 2011, surgiu a Agência Pública, e no acompanhamento ao vivo das manifestações contra aumento de passagens em 2013, surgiu o coletivo Mídia Ninja. Hoje há algumas centenas de veículos digitais progressistas que são bastante diversos e variam segundo a estrutura e modelo de negócios, o número de profissionais envolvidos (que vai de um a dezenas), o alcance nas plataformas, o acesso a tecnologias e a fontes de informação para produção de notícias. Estes veículos se apresentam por diferentes canais, tendo programas ao vivo – em geral, transmitidos via YouTube® – como mecanismo para arrecadar recursos. Os anúncios governamentais, que estiveram suspensos durante os governos Temer e Bolsonaro, agora aparecem publicados em alguns destes veículos, que também recebem recursos das plataformas por engajamento de público, especialmente com anúncios que precisam ser visualizados por um determinado tempo para ser pago. Há ainda, os que organizam coletivos, aos quais denominam "comunidade", para obter recursos para sustentar o jornalismo, que é produto caro.


mídia pública: engloba veículos públicos, como TVs educativas, universitárias, e de organismos do Estado. Estas mídias servem para alimentar pequenas emissoras e veículos no interior do país e também a mídia independente com informação gratuita já elaborada. Durante o julgamento do núcleo 1 da tentativa de golpe de Estado no Brasil, no Supremo Tribunal Federal, a transmissão feita pela TV Justiça foi retransmitida por muitos veículos jornalísticos de áudio e audiovisual. Redes formadas por veículos independentes chegaram a registrar audiência de 100 mil aparelhos ligados na cobertura do julgamento.


movimentos sociais organizados: neste grupo estão incluídos os partidos políticos (e respectivos centros de formação política), sindicatos, frentes políticas, organizações não-governamentais, projetos de pesquisa e extensão de universidades públicas. Precisamos considerar, ainda, os grupos fechados em aplicativos de mensagerias. Além de fazer chamados à organização e mobilização, muitos destes movimentos possuem canais próprios e oferecem uma variedade de cursos de formação para uso da tecnologia na ação política.


Algumas observações sobre este recorte de redes que impactaram as pessoas na manifestação, considerada de forte engajamento orgânico:


Mesmo com manipulação de fluxos por meio de algoritmos, as plataformas foram utilizadas intensamente para orientação dos movimentos nas ruas, para apresentação de links, fotos, textos e vídeos sobre o que ocorreu em todo o país. Houve explosão de memes e, especialmente, o uso de inteligência artificial para explicar, com humor crítico, a atuação de parlamentares pela autoproteção quanto ao cometimento de atos criminosos. As tecnologias estão mais acessíveis, o que favorece o uso massivo.


A mídia independente passou a utilizar fortemente o material gratuito produzido pelas mídias públicas e a ampliar o número de profissionais em coberturas. Também passaram a mostrar as manifestações populares expressas em memes, vídeos, fotos e textos nas mídias das plataformas sem preocupação com a estética perfeccionista que marcou o jornalismo nos meios de comunicação de massas.


As sessões de legislativos e judiciários – municipais, estaduais, distritais e federais – passaram a ser transmitidas por mídias próprias e distribuídas por veículos independentes com análise e explicações feitas por jornalistas experientes, muitos dos quais já trabalharam em jornais da mídia corporativa e por jovens estagiários que têm domínio das tecnologias.


A mídia independente, que se fortaleceu no período da pandemia, impactou na linguagem e formato do que a mídia corporativa sempre apresentou. Em geral, a cobertura política nos veículos tradicionais era feita com a apresentação de alguma decisão final do parlamento ou do Judiciário. A mídia progressista passou a acompanhar o jogo político nesses ambientes e a oferecer sempre algum letramento sobre o assunto espinhoso. A sessão da PEC da "blindagem” – segundo alguns veículos, "PEC da bandidagem” – teve cobertura intensa e extensa.


Negociações e discursos foram devidamente traduzidos como ameaças, lobbies, quando assim se apresentaram. Este formato de cobertura tem empurrado as redes da mídia corporativa a avançar e acompanhar o dia-a-dia do Congresso Nacional, por exemplo.


Muitos atores-rede ficaram de fora desta avaliação: os representantes políticos eleitos, por exemplo, que têm utilizado as redes digitais como ferramenta para que se destaquem junto ao eleitorado. Mas, essas redes não são apenas caminho para emissão de recortes de imagens, elas são dinâmicas, e atualmente têm dado um certo fôlego às informações verdadeiras. Mas isso é outro assunto, a ser tratado em um texto específico.



*Márcia Marques, professora do curso de Jornalismo da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília (UnB) desde 1997. Jornalista de formação, mestra em Comunicação e doutora em Ciência da Informação, com pesquisa sobre um modelo teórico-metodológico para a ação em rede. Autora do livro Ciberfeminismo: redes e espaços de poder, da editora Veneta.




1 comentário

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Lucia Irene Reali Lemos
há 2 dias
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Perfeita a tua análise! Precisamos que a população que elege os políticos que formam governos que manipulam pensamentos e atitudes através das redes, mídias sociais e setores que fornecem informações, notícias, e que lucram absurdos...é urgente que essa população tenha acesso à educação e formação sobre a "vida cibernética". Precisamos de mais Márcia Marques no nosso dia-a-dia.

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