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Sobre as redes digitais e os cachorros do Peru

  • Beto Seabra
  • 30 de jan.
  • 3 min de leitura



Em uma crônica escrita nos idos dos anos 1990, o escritor Luís Fernando Veríssimo faz uma reflexão, sempre num tom bem humorado, sobre essa sensação que temos de que as coisas que acontecem longe da gente são sempre, e aparentemente, mais interessantes do que aquelas que estão acontecendo onde estamos. E, se bem me lembro, usava o exemplo das rodinhas de conversa em uma festa. A outra rodinha parece mais animada que a nossa por que não estamos lá, ou por que na verdade não estou escutando a conversa e, portanto, ela parece melhor do que realmente é?


Lembrei-me desse texto quando pensava sobre o papel das redes digitais nos dias de hoje. Não sei quem disse certa vez – isso já faz tempo e, pelo exemplo, a pessoa não era novinha – o Facebook seria a revista Caras dos não-famosos. Se antes das redes digitais as pessoas invejavam somente os famosos em suas casas e vidas aparentemente maravilhosas estampadas na Caras, agora a inveja tinha sido democratizada. Nos últimos anos, viramos (quase) todos invejosos e invejados.


Não vou usar aqui a expressão preconceituosa “inveja branca”, porque inveja é inveja. Só não sente quem mente. Melhor assumir que sente mesmo e pronto. Dói menos. Ou se não sente, beleza, parabéns por ter alcançado esse estágio cada vez mais raro nos dias de hoje.


Voltando à crônica do Veríssimo, que para mim é uma espécie de gênio das letras que ainda não foi completamente assimilado, lembro que ele começou essa conversa sobre esse sentimento de inferioridade que às vezes temos em relação ao outro por um fato ocorrido em um restaurante em Paris. A caminho do banheiro, ele captou um pedaço de conversa entre uma mulher e um homem, ambos belos e elegantes, e tentou ficar imaginando o restante do diálogo. Será que a continuação do bate-papo seria tão interessante quanto aquele trecho que ele entreouviu de passagem, ou, se estivesse na mesa com o casal, veria que era uma conversa trivial?


Trazendo a questão para os dias atuais: aquela foto que seu amigo postou nas redes digitais representa realmente um momento mágico, de plena felicidade, ou mostra apenas que as pessoas precisam ser vistas para que a alegria se realize?  E, afinal, se precisamos dessa confirmação do olhar do outro para que o nosso momento se eternize, como ficam as pessoas que estão fora das redes? Como conseguem viver sem esse espelho narcísico que virou um grande salão de festas virtual?


Talvez a resposta esteja na literatura. Na mesma crônica, que consegui encontrar e chama-se “Cachorros no Peru”, Veríssimo finaliza de modo genial. Depois de constatar que, afinal, e ainda referindo-se às rodinhas de festas, “a verdade é que todas as conversas, de longe, parecem mais interessantes do que são”, ele conclui que “as conversas mais interessantes são as que não conseguimos ouvir, mas só porque não conseguimos ouvir”.


Derivando para os dias atuais, será que as redes digitais seriam as rodinhas de festas ampliadas a uma escala gigantesca? Se isso for verdade, viveríamos então em um eterno salão repleto de rodinhas de conversas que não conseguimos ouvir. Talvez isso faça muito mal à nossa saúde mental, a não ser que compreendamos que são apenas rodinhas distantes, nada mais que isso.


E para finalizar, ainda sobre a crônica. O título “Cachorros no Peru” refere-se ao trecho que ele entreouviu no restaurante francês. A mulher teria perguntado ao homem: “Mas existem cachorros no Peru?”. A partir dessa pergunta fantástica, Veríssimo fez o resto.   

 
 
 

1 comentario

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Invitado
30 ene
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Genial! Sim. É preciso refletir sobre o ambiente digital. Certamente isso nos ajuda a ver com mais concretude o cotidiano que vivemos e, quem sabe, encontrar mais beleza naquilo que dizemos e pensamos?

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