A menina que corre como um cavalo pé duro
- Ana Lúcia Medeiros
- há 19 horas
- 4 min de leitura
Vídeo amador de uma menina descalça vencendo dois meninos velozes na corrida em um campo de futebol no Sertão paraibano chega ao treinador certo e a menina tem carreira meteórica como velocista
Por Ana Lúcia Medeiros

Maria Alyce de Lucena, 19 anos, é a prova viva de que lançar todas as forças para atingir uma meta é sinônimo de sabedoria e domínio próprio, que ela carrega desde cedo. A batalha começa ao nascer, quando parte dos movimentos do ombro esquerdo fica comprometida por causa de uma lesão no plexo braquial (responsável pela transmissão dos impulsos nervosos que controlam a dinâmica e a sensibilidade do membro superior). Isso não afetou a autoestima nem a determinação da menina. A mãe a ajudou a superar a dificuldade com idas regulares às sessões de fisioterapia. O tratamento fisioterápico deu tão certo que ela até se esqueceu que um braço é diferente do outro membro superior. E parece ter transferido para as pernas a força que falta ao braço esquerdo. Corre como poucos.
É isso que vem mostrando nos dois últimos anos, desde que, com os pés descalços e calça comprida, uniforme da escola (ou “farda” como se fala na Paraíba), não representaram obstáculo para que a menina atingisse uma velocidade tal que vencesse dois meninos em um treino no campo de futebol da cidade de Quixaba, a 254 quilômetros de João Pessoa.
Depois do êxito no treino com os dois coleguinhas no campo de futebol, vieram vitórias em série: Campeonato de Escolares no Sertão da Paraíba, Jogos Paraescolares estaduais, Paralimpíadas de Belém/PA, São Paulo e, indo além das próprias expectativas, no Parapan de Jovens, em Santiago. E, assim, Maria Alyce prova que um bom tênis de corrida é importante, mas a força de vontade supera qualquer acessório. É vitoriosa aonde quer que vá.

A capacidade transformadora do vídeo amador
A determinação de Maria Alyce se soma ao potencial reverberante de conteúdos que circulam nas mídias sociais digitais. A filmagem do treino no campo de futebol foi decisiva na carreira meteórica da estudante de passos ligeiros. “Vai, vai, vai, Maria Alyce, vai!”. Os gritos do professor de Educação Física, Wesley Rodrigues, registrados no vídeo que gravou, impulsionam a menina a correr com celeridade e vencer os meninos, normalmente mais velozes, de acordo com especialistas.
Foi nesse contexto que o vídeo amador chegou a Pedro de Almeida Pereira (Pedrinho, como é conhecido), treinador que costuma revelar nomes de paraibanos que conquistam projeção nacional e internacional, a exemplo de Petrúcio Ferreira – multicampeão com deficiência nos membros superiores, que alcançou o posto de atleta paralímpico mais rápido do mundo nos 100m; o medalhista Joeferson Marinho – medalha de bronze nos Jogos Paralímpicos de Paris 2024 e recordista nacional da categoria T12 (baixa visão); além de Cícero Nobre (lançamento de dardo) – destaque em Tóquio, Paris, Kobe, Santiago, Dubai e Lima.
É com esses atletas de alto rendimento que Maria Alyce divide a Pista de Atletismo da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), em João Pessoa, para onde mudou-se em maio deste ano, a convite de Pedrinho. Tudo aconteceu muito rápido. Foram dois anos, desde a circulação do vídeo amador (2023), ao prêmio em Santiago (2025).
“Nunca pensei em sair do interior da Paraíba. Sou de família humilde e jamais imaginei levar Quixaba para o Chile e participar de uma competição com 27 países”, disse a filha de agricultores, que valoriza as origens e reconhece que os estudos apontam caminhos que levam a algum lugar no mundo.
Professores e coleguinhas da Escola Cidadã Integral, no município de dois mil habitantes, têm papel importante na decisão da menina de seguir em frente. Na disciplina Projeto de Vida, sob a regência da professora Margalhem Duarte, eles construíram a “árvore da vida”. Uma das 33 profissões que compõem a árvore é a de atleta. Por quê? Porque entre os alunos da turma está a menina que corre como o cavalo pé duro da caatinga, conhecido por sua capacidade de corrida e resistência. Na escola, Maria Alyce compreendeu que um projeto de vida deve ser buscado com todas as forças, seguindo a máxima de que “quem se cansa não chega ao fim do caminho”.

Uma carreira meteórica
Maria Alyce levou a sério o que está na base de sua história de vida, como observa o treinador Pedrinho, uma espécie de olheiro paralímpico. O olhar aguçado do treinador logo viu a força da menina e a resistência na corrida, diferenciais que possibilitam a evolução. Do ponto de vista pessoal, ele entende que a corredora sertaneja tem a sabedoria de mais escutar do que falar e vê na garota a determinação que contribui para o avanço como velocista destemida, que sabe competir. E define: “Maria Alyce nasceu no mato e cresce como o mato”. A expectativa de Pedrinho é que, com as características que carrega, ela cresça muito. “Vai exigir muito de mim, como treinador, porque ela tem foco, o que é um grande pré-requisito”, atesta.
De Quixaba para Los Angeles
Sob o olhar atento de Pedrinho, a sertaneja corre diariamente na pista de atletismo que segue o padrão internacional das pistas oficiais: 400m de comprimento. O rumo? As Paralimpíadas de Los Angeles, em 2028. Dá para duvidar que a sertaneja veloz vai trazer para os amigos, professores e familiares de Quixaba e João Pessoa as medalhas conquistadas no lugar dos Estados Unidos onde se fabricam mitos? Pedrinho prefere torcer para que a menina que “saiu do mato” e o adotou como seu segundo pai, vença a competição em Los Angeles, mas continue a ser a pessoa solidária e sensível que conquista a todos pelo jeito simples de ser.
Pedrinho reconhece uma competitividade saudável em Maria Alyce, cuja habilidade de vencer está dissociada do desejo de derrubar o adversário. O experiente treinador vislumbra que a menina de seus olhos não permita afetações de outros desejos. “O ego atrapalha”, garante.




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