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O dicionário, o corvo e o celular

  • Beto Seabra
  • 12 de fev.
  • 3 min de leitura

O celular só ganhou esse espaço nas vidas e mentes dos alunos porque competia com adversários fracos: aulas chatas, professores mal remunerados e cansados de ensinar o mesmo e da mesma forma


Começou como uma brincadeira de criança. Cada um tinha que escolher uma palavra no dicionário e os demais deveriam adivinhar o significado. Era muito engraçado, pois o que pelo nome parecia ser um bicho, às vezes era coisa, ou o que sugeria ser uma comida, na verdade era um tipo de vestimenta exótica, e por aí seguia a brincadeira, misturando imaginação e o pouco conhecimento infantil que tínhamos sobre o mundo das palavras.


Muito tempo depois descobri que aquela brincadeira de criança havia virado um jogo de tabuleiro, com direito a cartelas bem feitas, regras e ilustrações que deixavam a descoberta das novas palavras ainda mais interessante. Joguei algumas vezes com meus filhos em uma das férias e relembrei o prazer de brincar com o conhecimento, mostrando que até o dicionário pode se tornar um parque de diversões para todas as idades.


O que aquela brincadeira de crianças e o jogo de tabuleiro mostram é que o estudo não precisa ser chato para ser produtivo. A palavra lúdico vem do latim ludus, que significa jogo, mas também exercício ou ainda imitação. E, afinal, a educação não tem sido muito isso: fazer exercícios à exaustão para fixar o conteúdo e imitar experiências dos outros? E se a educação passasse a priorizar a tradução mais literal do seu ancestral ludus e passasse a ser mais, ou pelo menos também, um grande jogo de ensinamento e aprendizagem?


O celular virou o grande vilão da educação a ponto de ser banido das salas de aula. Não questiono. Estudos sérios mostram que crianças e adolescentes que ficam muito tempo em frente das telas absorvem menos conhecimento. Mas é verdade também que o celular só ganhou esse espaço nas vidas e mentes dos alunos porque competia com adversários fracos: aulas chatas, professores mal remunerados e cansados de ensinar o mesmo e da mesma forma.




Desenho de Poe e seu O Corvo (Poe Raven Horror royalty-free stock illustration. Free for use)
Desenho de Poe e seu O Corvo (Poe Raven Horror royalty-free stock illustration. Free for use)

Quando eu era estudante de Comunicação tive aulas de oficina de texto, em um tempo em que ainda não se falava de cursos de escrita criativa no Brasil. O nosso professor era um publicitário, que por acaso também era músico e compositor. As aulas dele nunca foram chatas, pois naquela época ele já sabia que competia com a televisão e o recém-chegado computador. 


Em uma aula até hoje inesquecível, esse professor entrou na sala de aula, pediu para um aluno apagar as luzes da sala e em seguida, usando um facho de luz de uma lanterna, fez uma leitura dramática do poema O Corvo, de Edgar Allan Poe. Em seguida, pediu que cada um de nós escrevesse sobre aquela sensação. Não determinou tamanho nem regras. Poderíamos escrever qualquer coisa, uma simples frase, uma ideia que viraria um conto, crônica ou poema, ou ainda fazer um desenho. Quem não quisesse fazer nada, poderia aguardar o final da aula e dizer por que havia preferido o silêncio.


O resultado dessa aula lúdica foi impressionante. Durante meses comentamos sobre ela nos corredores da faculdade. Soube depois que uma colega que escrevera um poema-comentário sobre o Corvo, intitulado Sabiá, chegaria a ser uma escritora de relativo sucesso.


Aquele professor soube explorar ao máximo a ludicidade de uma oficina de texto, pegando a todos de surpresa desde o início da aula e nos fazendo, literalmente, jogar, brincar, com o poema de Poe.


Misturou a magia do teatro com o velho, e cada vez menos usado, hábito de ouvir histórias antes de dormir no quarto escuro, iluminado apenas pelo abajur e pela voz da contadora de histórias.

3 Comments

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Mauro Sampaio
Feb 12
Rated 5 out of 5 stars.

Antes dos celulares, tínhamos olhos e ouvidos para histórias. E vozes para também contarmos as nossas histórias. Empobrecemos ludicamente.

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Guest
Feb 12
Rated 5 out of 5 stars.

É verdade. Alguns mestres têm o domínio criativo da sala de aula. Foi o caso. Sempre podemos nos dedicar mais ao ofício que nos propomos exercer e, quem sabe, driblar com mais propriedade as perversidades próprias das big techs. Saber usar as ferramentas digitais também é sabedoria. Devemos buscar aplicá-la ao máximo em nossa rotina. E ler mais livros e olhar mais em volta, se possível. Sempre recorrendo ao dicionário, como ensina Maria Valéria Rezende.

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Guest
Feb 12
Rated 5 out of 5 stars.

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